O princípio formal da Reforma Protestante e o judaísmo Caraítico. Ponto de contato.
- Equipe Pregue a Palavra
- 9 de jul. de 2019
- 10 min de leitura
Atualizado: 17 de jul. de 2019
por Nelson Galvão |

Se você não vem de um contexto judaico, provavelmente nunca ouviu falar dos Caraítas.
O movimento dos caraítas foi um segmento dentro do judaísmo do séc. VIII cujo a demanda principal foi a autoridade da Torá. Qual a relação dos caraítas com a Reforma Protestante do séc. XVI? Acredito que o ponto de contato do movimento Caraíta com a Reforma Protestante está exatamente em seu princípio formal, a autoridade das Escrituras. Vejamos.
Os escritos judáicos
A Mishna
Ao longo dos séc. I e II d.C, os rabinos compilaram uma série de escritos que surgiram a partir da Tradiçao Oral, denominados Midrash (“investigação” ou “interpretação”). Esses Midrashim (no plural) eram o resultado da exegese que os rabinos efetuavam da Escritura e sua aplicação prática às diferentes situações da vida.
A Mishiná foi uma coletânea desses Midrashim compilados pelo rabino Judá, sendo concluído no ano 220 d.C., quando se findaram sua redação e seu fechamento nas “seis ordens da Mishná”.
A Mishná foi de suma importância para o judaísmo, sendo capaz de unir o judaísmo palestino e não-palestino. Ele permanece ainda hoje como um ingrediente fundamental na educação da juventude judaica e estudo religioso ao longo da vida.
A Gemara
Com a Mishná em circulação iniciou-se a era dos “amoraítas” (séc. III – VI d.C), que significa “palestrantes”, ou “intérpretes”.
Durante esse período foram concentrados esforços por parte dos amoraítas na: (1) Explicação do texto da Mishná; (2) Harmonização das interpretações com outros textos da tradição; (3) Aplicação das interpretações às novas situações do dia-a-dia.
Essa ênfase do ensino é ressaltado por Borger da seguinte forma: “Estudar o Talmud tornou-se uma arte, aprendê-lo uma ciência, dominá-lo abria as portas à excelência e à liderança”[1].
Esses esforços por parte dos amoraítas na explicação da Mishná resultaram nas chamadas Sugiot. A coletânea dessas Sugiot chamou-se de Gemara (em aramaico, “ensinamento”, ou “tradição”), sendo toda ela escrita em aramaico, enquanto a Mishná em hebráico.
A Gemara trata de assuntos importantes da vida em geral como: orações, agricultura, relacionamentos sexuais, medicina, etc. Ela divide-se em dois tipos de narrativas: (1) Hálacha. Explicações sobre leis judaicas; (2) Aggadah. Relatos, histórias, metáforas e comentários sobre fatos bíblicos.
Os Talmuds
Houve dois lugares que produziram Gemaras: Jerusalém e Babilônia. Estes eram os principais centros acadêmicos judaicos da época. A junção da Mishná com a Genara resultou no Talmud (“estudo”, ou “aprendizado”) próprio de cada cidade, o Talmude de Jerusalém e o Talmude Babilônico.
O Talmude Babilonico (tem cerca de seis mil páginas) obteve primazia sobre o de Jerusalém. Isso se deu por conta das inúmeras perseguições infringidas à população judaica em Jerusalém. As condições de subexistência eram das mais terríveis, deixando pouco espaço para os estudos. Por outro lado, por volta do séc. II d.C, a população judaica na Babilônia (na época sob o domínio persa) era em torno de um milhão de habitantes[2], especialmente nas cidades de Sura, Nehardea e Pumbedita, onde foram estabelecidas importantes academias de estudo.
No séc. III, Rav Arika, discípulo do rabino Judáh Há-Nassi levou para a Babilônia uma cópia da Mishnáh e lá iniciou-se aquilo que culminaria no Talmud Babilônico.
A redação do Talmud Babilonico foi concluída por volta do séc. VI. A primeira cópia impressa foi produzida em 1482, na Espanha, e a primeira edição completa data de 1520 (embora seja corrente entre os judeus a afirmação de que o “Talmud nunca foi concluído”[3], indicando, assim, que o estudo do Talmud sempre se desenvolveu nas gerações subsequentes).
O Talmud está estruturado em Mishináh e Gemara. A parte da Mishnáh contém comentários, explicações e dabates sobre a Lei, enquanto que a Genara, em termos gerais, se referem às narrativas.
O rabinato e os escritos judaicos. Os Geonim.
No séc. VII d.C surgiu a figura dos Geonim (plural de Gaon, “excelência”). Este nome foi atribuído aos líderes das duas principais academias judaicas da época, Sura e Pumbedita.
Estas academias foram responsáveis pela produção do Talmude Babilônico. Com a conclusão do Talmude no séc. VI, os estudos talmudicos deram sequência e os gueonim, na condução destes, alcançaram notável prestígil com o status de intérpretes oficias da Lei.
Sendo assim, os Geonim eram lideres reconhecidos em suas comunidades (eram até mesmo chamados de “pilares da comunidade”) e, consequentemente, pelos governos islâmicos, como árbitros oficiais sobre questões religiosas e civis.
Coube aos Geonim a difusão e a consolidação do Talmude como código legal de todas as comunidades judaicas.
As demandas acerca da Lei de comunidades judaicas do Egito, África, Espanha, França, Itália e Alemanha eram enviadas para os Geonim, na forma de Sheelot (consulta). Esses Sheelots eram discutidas nas academias e o consenso era divulgado pelos Geonim, como Teshuvot (resposta).
Foram preservadas milhares dessas Teshuvot. Uma delas é a consulta da comunidade de Lucena, Espanha, que pedia informações sobre a ordem das rezas na comunidade da sinagoga. A Teshuvot de Rav Amram Gaon (860 d.C) deu origem ao primeiro livro de orações que continua em vigor até hoje e é utilizado nas festas litúrgicas, no Shabat e ocasiões como casamentos, circuncisão e funerais.
O sistema de Sheelot u-Teshubot (perguntas e respostas) chegou aos tempos modernos. Existem depoimentos de rabinos que sobreviveram aos campos de concentração nazistas no séc. XX. Esses depoimentos relatam questões que foram discutidas como[4]: No contexto de campo de concentração, era permitido abortar? O caso de uma mãe que tapou a boca de uma criança para não chorar, durante uma ronda de nazistas, e a criança morreu. Esta mãe é culpada de assassinato?
A reação anti-rabínica
O vigor das academias de Sura e Pumbedita ao poucos se arrefeceu. Os fatores são os seguintes: (1) A influência dos Gueonim foi diminuída com o declínio do califado; (2) Nos centros de estudo, com a Espanha, França e o Egito, aos poucos foram tomando o lugar da Babilônia; (3) Lutas pelo poder entre os Gueonim e os Exilarcas (chefe da população judaica que vivia sob o califado), diminuíram a confiança do judeu na Babilônia; (4) O rigor talmudico chegou ao ponto de ditar os mínimos detalhes da vida. Desde como rezar até a compra de uma roupa nova.
Os Caraítas
É nesse contexto que surge o movimento dos Caraítas. O conjunto dos fatores descritos acima favoreceu o surgimento de movimentos sectários no seio do judaísmo. O principal desses movimentos ficou conhecido como “o movimento dos caraítas”, no séc. VIII. O líder desse movimento foi Anan bem Davi. Seus seguidores ficaram conhecidos como Ananitas, ou Caraítas (escrituralistas). Ficaram assim conhecidos porque os Caraítas desafiaram os Gueonitas no campo da lei ritual, civil e criminal.
O ponto principal de demanda caraíta era que o judeu deveria voltar à observância restrita do texto bíblico e rejeitar todo o corpo interpretativo rabínico erigido ao longo de séculos; ou seja, a Lei Oral e o Talmude. Observe o que disse um sábio coraíta:
Isso é para nos mostrar que não somos obrigados a seguir os costumes de nossos pais em todo aspecto, mas temos de refletir sobre seus costumes e comparar suas ações e suas leis com as palavras da Torá. Se vemos que os ensinamentos de nossos pais são exatamente como as palavras da Bíblia, devemos aceitá-los e prestar atenção a eles. Devemos eguí-los e não ousar modificá-los. Mas se os ensinamentos de nossos pais são diferentes da Bíblia, devemos eliminá-los, e devemos nós mesmos procurar, investigar e pensar nos mandamentos da Torá[5].
Além do mais, para os Caraítas, todos tinham o direito de interpretar a Torá e não somente os rabinos. Seu lema era: “Procure bem na Torá, e não aceite cegamente a minha opinião”[6].
O movimento se propagou, especialmente entre as classes mais letradas, e sob a liderança de Daniel al-Qumisi (850 d.C), uma comunidade caraíta foi estabelecida em Jerusalém. No séc. X Jerusalém era um dos maiores centros intelectuais caraítas. No início do séc. XX haviam 13.000 carítas na Europa. Hoje existem 7.000 vivendo no Estado de Israel[7].
O movimento caraíta estimulou a renovação do estudo da Bíblia e língua hebraicas. O renovado interesse pelo estudo da Bíblia levou os eruditos a questão de qual era o verdadeiro texto da Tanakh, uma vez que este tinha passado por inúmeras cópias desde o tempo de Esdras. Em Tiberíades, os eruditos se lançaram à tarefa de crítica textual. Nessa tarefa, criaram os sinais vocálicos (em forma de pontos em baixo e em cima das letras) e os sinais de pontuação (como vírgulas e pontos). Esse trabalho resultou no que ficou conhecido como “o texto tradicional” da Bíblia hebráica, ou Massoreta (tradição).
Qual é a relação do movimento Caraíta do séc. VIII com a Reforma Protestante do séc. XVI? Acredito que o princípio formal é o mesmo, a autoridade das Escrituras.
A reforma protestante
A reforma Protestante do séc. XVI foi, antes de mais nada, um movimento cujo princípio formal foi a autoridade das Escrituras. Perceba que este princípio não diz respeito à “Escritura abstraída da economia da graça”, ou à “Escritura independente da tradição da igreja”, conforme advertido por Vanhoozer[8], mas sim que somente a Escritura é a autoridade suprema para determinar a verdade doutrinária. Isso implica em que a tradição da Igreja - expressa em seus concílios, cânones, ou papa – deve se curvar à autoridade das Escrituras e não ao contrário.
Vejamos o princípio formal da Reforma em Martinho Lutero. Qual foi o fundamento autoritativo para a argumentação das 95 Teses que foram arvoradas contra as indulgências? Lutero afirma: “nas Sagradas Escrituras nada contêm a respeito das indulgências”[9]. Perceba, a base de autoridade são as Escrituras.
Em carta ao papa Leão X, Lutero argumentou que “em primeiro lugar, protesto que absolutamente nada quero dizer ou sustentar senão o que é e pode ser sustentado primeiramente nas Sagradas Escrituras”[10].
No contexto da dieta de Augsburgo, de 1518, Lutero em carta aberta apresentou na prática o princípio formal da autoridade das Escrituras, uma vez que estas são encaradas como parâmetro para o exame das Bulas papais:
Respondi então que não só examinara atentamente essa bula de Clemente, mas também a outra, análoga e do mesmo objetivo, de Sixto IV (pois eu realmente tinha lido as duas, juntamente com sua verborréia, que, de tão cheia de ignorância, merecidamente Ihes tira a credibilidade); mas eu não podia atribuir-lhe autoridade suficiente, entre muitas outras razões porque ela abusa das Sagradas Escrituras e (se é que ainda deve vigorar o seu sentido usual) se atreve a torcer as palavras para um sentido estranho e até contrário ao que elas têm no lugar em que estão[11].
O Reformador da suíça, Ulric Zuínglio escreveu os 67 Artigos para a Primeira Disputa de Zurique, em 1523. Perceba os artigos 1, 5,13 e 16.
Artigo 1: Todo que diz que o Evangelho é nada sem a sanção da Igreja, erra e blasfema contra Deus.
Artigo 5: Então, todos que consideram outros ensinos iguais ou maiores que o Evangelho, erram. Eles não sabem o que o Evangelho é.
Artigo 13: Sempre que dermos ouvidos à palavra, nós adquirimos puro e claro conhecimento da vontade de Deus e somos atraídos a ele por seu Espírito e transformados em sua semelhança.
Artigo 16: No evangelho nós aprendemos que o ensino e os estatutos humanos são de nenhuma utilidade para a salvação[12].
Calvino faz parte da segunda geração de reformadores. Nas Institutas ele expressa sua convicção em relação à autoridade das Escrituras:
Quão peculiar, porém, é esse poder à Escritura, transparece claramente disto: que dos escritos humanos, por maior que seja a arte com que são burilados, nenhum sequer nos consegue impressionar de igual modo. Basta ler a Demóstenes ou a Cícero; a Platão ou a Aristóteles, ou a quaisquer outros desse plantel: em grau admirável, reconheço-o, são atraentes, deleitosos, comoventes, arrebatadores. Contudo, se te transportares dali para esta sagrada leitura, queiras ou não, tão vividamente te afetará, a tal ponto te penetrará o coração, de tal modo se te fixará na medula, que, ante a força de tal emoção, aquela impressividade dos retóricos e filósofos quase que se desvanece totalmente, de sorte que é fácil perceber que as Sagradas Escrituras, que em tão ampla escala superam a todos os dotes e graças da indústria humana, respiram algo de divino[13].
Não é por acaso que Calvino menciona a filosofia grega nesse texto. Esse era o fundamento da teologia escolástica durante toda a Idade Média.
A autoridade das Escrituras hoje
Ao longo dos séculos subsequentes, o princípio formal da Reforma se arrefeceu em muitos segmentos que se apresentam herdeiros dos protestantes do séc. XVI e XVII.
Nesses segmentos a autoridade das Escrituras tem sido rejeitada de maneira formal ou informal. A maneira formal de rejeição das Escrituras pode ser vista mais em meios não-cristãos, ou em meios liberais (com o liberalismo teológico do séc. XIX).
Por outro lado, a maneira informal de rejeitar as Escrituras pode ser amplamente vista no meio evangélico atual. Essa maneira informal se apresenta de inúmeras formas. Eis algumas:
a- Interpretações espiritualistas, alegóricas ou existenciais das Escrituras. Por exemplo, diz-se que assim como José foi lançado no poço pelos seus irmãos, também na vida nos encontramos em “poços” de dificuldade no casamento, trabalho, etc.
b- Afirmações do tipo “isso não é para os nossos dias”, quando se trata de textos que chocam com a mentalidade pós-moderna. Uma pergunta que deveria nos ajudar a refletir sobre isso seria: Quem determina o que é atual ou não no texto das Escrituras? A partir daí, se formos honestos, verificaremos quem é a autoridade.
c- Tradições denominacionais sacralizadas e perpetradas por Confissões, Declarações de Fé, ou até mesmo comentários bíblicos;
d- O conhecimento humanístico adquirido acriticamente em bancos universitários tem sido usado como rejeição informal às Escrituras. Por exemplo, a educação cristã tem se dado a partir de bases da pedagogia moderna (que é humanista) e não nas Escrituras.
e- Experiências místicas, revelações e o carisma de líderes também têm sido instrumentos de rejeição às Escrituras.
O princípio formal da Autoridade das Escrituras encontrado entre os judeus caraítas do sec. VIII e o Reformadores do séc. XVI faz parte de um sítio arqueológico para inúmeras igrejas evangélicas de nossos dias. Afinal, quantos de nós, pastores, teríamos coragem suficiente para levar a congregação a dizer juntamente com o sábio coraíta: “se os ensinamentos de nossos pais são diferentes da Bíblia, devemos eliminá-los, e devemos nós mesmos procurar, investigar e pensar nos mandamentos da Torá” ?
*Nelson Galvão

Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho.
Atua como diretor pedagógico do ministério Pregue a Palavra, como coordenador dos grupos do Pregue a Palavra de Cuba e Moçambique e como professor de História da Igreja, da Escola de Pastores PIBA.
Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente cursa o programa de mestrado em Teologia do Novo Testamento, no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.
Referências
[1] BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. Vol. 1. p. 285.
[2] BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. Vol. 1. p. 275.
[3] GIGLIO, Auro del. Iniciação ao Talmud. p. 29.
[4] BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. Vol. 1. p. 340.
[5] BEREZIN, Rifka. Caminhos do povo judeu. p. 53
[6] Ibid. p. 39.
[7] BORGER, Hans. Uma história do povo judeu. Vol. 1. p. 346.
[8] VANHOOZER, Kevin J. Autoridade bíblica pós-reforma. p. 151.
[9] Lutero. Obras selecionadas de Martinho Lutero. Vol. 1. p. 214
[10] Ibid. Vol. 1. p. 62
[11] Ibid. p. 204
[12] http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/outros-reformadores/os-67-artigos-de-zuinglio.html
[13] Calvino. As Institutas. p. 89
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